“(…) e quando descem as trevas sobre a nossa miséria, se não dispusermos de pena, nem de graveto, nem de tinta, nem de água, ainda assim escreveremos a História, riscando com o indicador o ar que respiramos (…)”
Mário Cláudio
E passeiam-se assim os minutos pelo rosto, incansáveis e inesgotáveis, como lavradores intrépidos abrindo sulcos ao único abrigo do sol e do horizonte. Passeiam-se assim, invisíveis e inaudíveis, como os finíssimos raios de luz que antecedem a visão, irrompem na alma como as valas que são criadas para que passem os rios, talvez rios de lágrimas, ou de um outro líquido ainda por inventar e que represente a alegria e a temperança. Formam obras gigantescas nos livros das horas e dos dias, que para serem lidas de fio a pavio necessitam de olhos pacientes e doces, capazes de perceber promessas e metáforas, entrelinhas e abismos.
Apenas a fome não me abandona agora, como irmã de todo este cansaço que corrói o rosto e as olheiras fundas. Apenas a fome me acompanha, a fome de sabores doces e palavras, de verdades e olhares cúmplices, ou então de novas paisagens e ruídos, que mostrem outros mundos e novos temas. Encha-se então de palavras assombrosas a alvura da página, de predicados indefinidos e imagens de difícil alcance, pois já não há lugar a frases simples ou apenas harmoniosas, que é sempre nas entrelinhas que mora a verdadeira verdade, nelas fez o seu lar e dele apenas se separa quando a voz doce de algum desejo incensato a chama, suplicando por que se abra um caminho ou por que nasça um abraço.
E é então que, como um louco pela rua agradecendo tudo a todos, vejo os olhares surpreendidos de quem não compreende a razão de tal gratidão, e, sorrindo intimamente, torno a bailar a caneta na superfície lisa, ou o graveto na areia molhada, sem lembrança de que as ondas virão mais tarde, quando as marcas dos pés já marcarem o sentido inverso, alterar toda a configuração dos areais e apagar as inscrições arrumadas entre os grãos de areia outrora unidos. Mas não importa, existem também as doçuras que estão escondidas ou que já foram e permanecem agora apenas nas memórias. Ou nos sonhos não concretizados. Porque existem odisseias onde os marinheiros, apesar de embarcados, nunca chegam a ver o mar, perdem-se na visão do ferro e da ferrugem, da casa de máquinas e do porão, e em fugazes olhares de espanto rumo ao aberto céu. E acreditam ser esse o fim da viagem, que nada há para além dos limites da embarcação; por isso espantam-se quando rugem as águas, ou invade o ar o negrume das tempestades, ou se embalam com o cântico das sereias, misturado com o ruído do marejar. E é sempre o mar que canta esse vai-vém das ondas, que enfeitiça os corações. Os mais atentos, ainda que escondidos, às vezes juram ouvi-lo chorar. E diz o mar: “Tenho os nervos tão à flor da alma, que derramo lágrimas por cada rosto que recordo, por cada amor que surgiu, mas não vingou, como as sementes de uma árvore que morreu sem ver o sol”. E as lágrimas do mar são de espuma contra as rochas, ou ainda de espuma em saltos aventureiros pelo ar, e humildemente deixa-se ser espelho do céu e das nuvens, enquanto, ao longe, ouve as histórias contadas já em terra, de grandes travessias e monstros horrendos, de grandes coragens e provações, palavras falsas e inexistentes, de feitos vazios e sem rumo, bordadas no silêncio da noite vazia e do medo.
04/11/2003
Minutos pelo rosto
Publicada por Luís Costa Pires à(s) 11:31
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