Tenho um jogo que quero jogar contigo. E se eu desconstruísse a tua personalidade? Se me limitasse a repetir mentiras ao teu ouvido de tal forma que elas se tornassem a tua verdade? Tens consciência de que há verdades diferentes para cada um de nós, não tens, que cada ser tem o seu próprio universo e individualismo, que o azul que eu vejo é diferente do que tu vês e que o sabor de canela é distinto para cada um de nós?
Mas imagina: e se eu te repetisse mentiras de forma constante, de forma séria e abnegada, até que acreditasses serem essas palavras a mais pura das verdades? Ficarias impávido e sereno à espera que tudo voltasse ao normal e que a mentira se desvanecesse no éter, ou adoptarias um novo estilo de vida e tentarias adaptar-te à nova realidade, mesmo sendo discordante dela?
E se eu te enchesse de ideias preconcebidas sobre Deus e o Diabo, sobre o paraíso e sobre a salvação, sobre o inferno e o purgatório, sobre as regras da sociedade, se eu te obrigasse a viver debaixo do seu jugo e declarasse que eram as únicas regras possíveis, mesmo que castradoras, mesmo que fossem contra a tua natureza? Se eu te dissesse para não saltares, para não cantares? Que a tua voz não é bem vinda para o que te rodeia, que não poderás nunca ser o que sonhas, que tens que seguir protocolos e ritos, adaptar-te a tudo, esquecer-te da natureza, do instinto que te liga ao universo?
Se eu te ordenasse que sejas o que detestas, que sejas o que não és, que saboreies o que não gostas? Se eu te agredir e obrigar a esquecer as coisas que desejas e te contentes com ilusões e o que todos os outros têm, com a rotina e o tempo? Se eu te obrigar a esquecer as pessoas que amas e os sonhos que te invadem de noite, se eu te condenar a que sejas no dia uma sombra do que podias ser, frágil e trémulo, ansioso pelo sono, pela liberdade do sonho? E, depois, com uma gargalhada, se até o sonho te roubar? Se te proibir de dormir, te obrigar a ficar acordado a olhar o vazio, sem poderes pensar em nada?
Terias medo? Pavor, talvez? Vontade de gritar? E se eu te tirasse a voz? Se quisesses gritar e não conseguisses, se abrisses a boca, mas não saísse qualquer som, se te quisesses mover, mas fosses uma estátua de pedra?
E se eu te colocasse uma arma na mão e gritasse? Se eu bradasse para que te escondesses na conformidade e defendesses o que vês daquilo que não vês, mas que ainda assim é real, que enche o ar apesar de apenas o sentires mas não ser visível? Talvez te dissesse que o ódio é o alimento do futuro, o único capaz de crescer, de ficar cada vez maior, intenso, apaixonante, até que tudo o resto seja consumido e apenas tu existas, com a arma na mão, a gritar para o infinito, nesse vórtice de ódio e loucura.
Se eu te apontasse um holofote para os olhos e jurasse que o amor não existe? E se jurasse tantas vezes que o amor não existe que isso mesmo se tornasse uma verdade para ti, se a luz te encadeasse de tal forma que pensasses ser um axioma inviolável? Ainda escreverias cartas como escreves? Ainda chorarias ao ver filmes românticos ou a pensar naquela pessoa que perdeste? Ainda lutarias como um louco pela felicidade e rezarias a pedir ajuda a Deus mesmo sem O conhecer ou sem acreditar na Sua existência?
E se, depois de te desconstruir a alma, depois de te desprogramar, como se faz aos computadores, eu te largasse no meio do mundo? Como reagirias? Ficarias assustado? Lutarias com unhas e dentes para regressar à antiga realidade? Ou irias para casa e ficarias fechado no teu quarto, encolhido sobre ti mesmo, sem querer ver o que te rodeia, sem querer sentir outra vez aqueles cheiros antigos e perfumados, que te trazem recordações que anseias serem outra vez realidade, o cheiro da liberdade de acção e de escolha, a capacidade de criar a tua vida a cada momento, sem medo, sem constrangimentos, sem regras, aqueles cheiros que te trazem outra vez à memória as paisagens, as paisagens flutuantes que te pairam na memória e te uivam na alma? Serias um autómato consciente das limitações do ser, consciente de que és apenas parte do que podias ser, de que és castrado, infeliz, miserável, apesar de todas as aparências e de todas as recompensas falsas?
E se esperneasses, se te revoltasses? Se, apesar do medo e do abismo, corresses para fora do casulo que construí em teu redor? E se descobrisses então que o amor existe e está em todo o lado, que o amor é criação pura, liberdade e coragem e é afinal a única redenção? E se uma simples carícia fosse capaz de reprogramar-te outra vez e de devolver a tua personalidade? E se uma só palavra fosse capaz de te fazer abandonar o mal? E se um beijo te fizesse esquecer de que tens medo do escuro e te permitisse sentir as coisas com verdade?
E se os anjos de asas brilhantes e os demónios de cornos e cauda não passassem de mentiras e apenas existissem pessoas, pessoas, com coisas boas e más, defeitos e virtudes, mas com luz, com individualidade, com liberdade, com verdade, com capacidade de criar e de amar, de sonhar e de caminhar?
E se tu fosses apenas uma delas, apesar o negares?
(excerto da peça de teatro homónima que publiquei no ano de 2003)
01/04/2010
A Desconstrução da Alma
Publicada por Luís Costa Pires à(s) 02:37
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3 comentários:
A liberdade de escolha, o agir ou não agir e o desencanto, numa actualidade sinistra, castradora, e sem rumos definidos que aterroriza e não deixa ser por inteiro ou autentico.
Ser ou não ser?
Muito bom o conceito do seu espaço, caro Costa Pires
Além de prezar pelo cuidado e estilo aqui, seus posts tem todo um conceito.
Você escreve com propriedade.
Tem um misto de poesia e cronica aqui! Gosto!
Gostei do seu espaço e estou de olho!
te sigo!
Adoro este monologo...
Acabei ontem, finalmente, de o ler na integra...
Espero ver isto um dia mais em cena, já sei, já sei, já esteve em cena... Mas, um dia gostava de ver...
(Vou tentar fazer um milagre... mesmo que virtual...)
"(...)E se esperneasses, se te revoltasses? Se, apesar do medo e do abismo, corresses para fora do casulo que construí em teu redor? E se descobrisses então que o amor existe e é afinal a única redenção?(...)"
in A Desconstruçºao da Alma e Quando Voltares, Luís Costa Pires
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