08/04/2010

Porque duvidaste, Jesus de pouca fé? (crónica de um benfiquista desiludido)

Jorge Jesus tem feito um grande trabalho à frente do Benfica. Isso não está minimamente em causa e, neste momento, se mandasse algo no clube, não o trocaria por nenhum outro treinador.

Posto isto, acredito no entanto que, hoje, Jorge Jesus foi pequeno demais para o Benfica. Aliás, provou, de uma vez por todas, que, graças ao seu conhecimento táctico, à sua capacidade de melhorar aspectos técnicos nos jogadores, etc, podia ser um dos melhores do mundo, mas que, para isso, precisa ainda de largar a mentalidade de medo e pequenez que tantas vezes acompanha o povo português, do qual ele é um tão típico representante.



Mas, infelizmente, ao contrário de Mourinho, que aceita ser um vencedor, afirma-o perante tudo e todos, e é por isso o melhor, Jorge Jesus não tem esse espírito de vitória. Está habituado a clubes pequenos, que lutam para não descer ou para ir à Liga Europa, está habituado a que qualquer bom resultado seja já uma vitória grande para o clube. Mas no Benfica isso não chega. E há momentos em que perceber de algo, seja no futebol ou em qualquer outra matéria, não é tudo. É preciso mais do que isso, é preciso ter alma e coragem. Sim, porque o futebol, às vezes, não é apenas futebol. Às vezes é também uma metáfora da vida. E hoje ficou provado isso. Raramente aquele que se previne, aquele que faz as suas escolhas contando com o falhanço ou com a derrota, aquele que joga pelo seguro, raramente esse triunfa. Esse, quanto muito, na melhor das hipóteses, não perde. Mas quem ganha realmente algo, e isto é uma lei da vida, não do futebol, é quem tem coragem e aceita criar o seu caminho.

Jorge Jesus quis perder o jogo de hoje. Andou a semana toda a apregoar o casaço que os seus jogadores sentiam por ter sido adiado o jogo com a Naval. Mas foi decisão sua. Andou a época toda a dizer que só queria o campeonato, retirando a grandeza europeia a um Benfica que tem história suficiente para a exigir e que, inclusive, já tinha mostrado estar à altura. Mais uma vez avisou dos perigos do cansaço de um onze que não tem sido rodado, também, digo eu, por medo, já que em alguns jogos durante o campeonato, em casa contra equipas francamente mais fracas, alguns jogadores podiam ter sido poupados, dando hipóteses a outros jogadores de ganhar ritmo competitivo e não sobrecarregando os titulares habituais.

Depois, a sua parte táctica, normalmente impecável, foi incompreensível hoje. Jorge Jesus apostou no inenarrável guarda-redes Júlio César em toda a competição europeia. Teve sorte nos primeiros jogos pois a equipa respondeu bem à sua insegurança, mas a verdade haveria de vir ao de cima mais cedo ou mais tarde. E hoje veio quatro vezes ao de cima. Sim, quatro, porque o golo sofrido por Moreira já é uma consequência de tudo o resto feito anteriormente. O brasileiro poderá um dia vir a ser um bom guarda-redes, mas ainda não o é. E muito menos para uma prova como esta.

Depois, como se não bastasse tudo isto, Jorge Jesus fez experiências na defesa num jogo desta importância. Como é possível que tenha tirado Maxi Pereira do onze inicial, logo ele, o mais batalhador de todos os jogadores do Benfica, ainda por cima quando ele está suspenso contra o Sporting e não era necessário poupá-lo? E Coentrão também não merecia uma hipótese de mostrar a sua raça? E não seria interessante ter esses dois laterais em campo, tão ofensivos, para meter em sentido as alas do Liverpool e evitar os cruzamentos para Torres?

E qual a razão para Jorge Jesus desfazer a melhor dupla de centrais dos últimos anos do Benfica, colocando David Luiz na esquerda e lançando um jogador que tem potencial mas que não joga e não tem ritmo, no centro da defesa, mesmo ali na área de intervenção de um dos melhores avançados do mundo, Fernando Torres?

O Liverpool não é melhor do que o Benfica. Exceptuando Torres, Gerrard e o Kuyt, nenhum jogador do Liverpool conseguiria ter de caras lugar como titular neste Benfica. E, como o Liverpool não é melhor do que o Benfica, não foi o Liverpool que ganhou o jogo. Foi o Benfica que o perdeu.

Claro que alguns benfiquistas vão falar do árbitro. E sim, o árbitro erra, parece-me, no lance do primeiro golo. Mas, além de ser um lance discutível, já na primeira mão o Benfica beneficiou de dois penalties e teve algumas felicidade na expulsão do jogador do Liverpool, pelo que não se pode usar a arbitragem como razão para a eliminação.

A derrota esteve na atitude. É caso para dizer que o espírito de ser coitadinho, o complexo de não ser capaz, o mais valer contentar-me com pouco do que arriscar tudo, esse mesmo espírito mesquinho que acompanha o nosso País, abateu-se sobre o Benfica, afinal de contas, seu representante além-fronteiras.

Obviamente que, mesmo que agora os jogadores se desmoralizem, o Benfica vai ganhar o campeonato. Tem uma vantagem confortável demais a cinco jornadas do final e o Braga, que é o único que racionalmente ainda pode chegar ao título, não tem estaleca para vencer os jogos todos, como por exemplo a deslocação ao Funchal para defrontar o Nacional. Mas, depois da forma como se deu esta derrota, mesmo vencendo Campeonato e Taça da Liga, fica um sabor amargo a pouco. Não porque o Benfica tenha obrigação de ganhar provas europeias. Mas porque o podia ter feito, se tivesse tido vontade para tal.

Seria interessante e irónico ver agora uma inversão da história bíblica e, perante o afogar do Benfica, ver-se, no banco, Rui Costa, vestido de São Pedro, ele tão habituado a ser vencedor, a ganhar troféus, a ter atitude de campeão, virar-se para Jesus e perguntar “Porque duvidaste, homem de pouca fé?”.

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01/04/2010

A Desconstrução da Alma

Tenho um jogo que quero jogar contigo. E se eu desconstruísse a tua personalidade? Se me limitasse a repetir mentiras ao teu ouvido de tal forma que elas se tornassem a tua verdade? Tens consciência de que há verdades diferentes para cada um de nós, não tens, que cada ser tem o seu próprio universo e individualismo, que o azul que eu vejo é diferente do que tu vês e que o sabor de canela é distinto para cada um de nós?

Mas imagina: e se eu te repetisse mentiras de forma constante, de forma séria e abnegada, até que acreditasses serem essas palavras a mais pura das verdades? Ficarias impávido e sereno à espera que tudo voltasse ao normal e que a mentira se desvanecesse no éter, ou adoptarias um novo estilo de vida e tentarias adaptar-te à nova realidade, mesmo sendo discordante dela?

E se eu te enchesse de ideias preconcebidas sobre Deus e o Diabo, sobre o paraíso e sobre a salvação, sobre o inferno e o purgatório, sobre as regras da sociedade, se eu te obrigasse a viver debaixo do seu jugo e declarasse que eram as únicas regras possíveis, mesmo que castradoras, mesmo que fossem contra a tua natureza? Se eu te dissesse para não saltares, para não cantares? Que a tua voz não é bem vinda para o que te rodeia, que não poderás nunca ser o que sonhas, que tens que seguir protocolos e ritos, adaptar-te a tudo, esquecer-te da natureza, do instinto que te liga ao universo?

Se eu te ordenasse que sejas o que detestas, que sejas o que não és, que saboreies o que não gostas? Se eu te agredir e obrigar a esquecer as coisas que desejas e te contentes com ilusões e o que todos os outros têm, com a rotina e o tempo? Se eu te obrigar a esquecer as pessoas que amas e os sonhos que te invadem de noite, se eu te condenar a que sejas no dia uma sombra do que podias ser, frágil e trémulo, ansioso pelo sono, pela liberdade do sonho? E, depois, com uma gargalhada, se até o sonho te roubar? Se te proibir de dormir, te obrigar a ficar acordado a olhar o vazio, sem poderes pensar em nada?

Terias medo? Pavor, talvez? Vontade de gritar? E se eu te tirasse a voz? Se quisesses gritar e não conseguisses, se abrisses a boca, mas não saísse qualquer som, se te quisesses mover, mas fosses uma estátua de pedra?

E se eu te colocasse uma arma na mão e gritasse? Se eu bradasse para que te escondesses na conformidade e defendesses o que vês daquilo que não vês, mas que ainda assim é real, que enche o ar apesar de apenas o sentires mas não ser visível? Talvez te dissesse que o ódio é o alimento do futuro, o único capaz de crescer, de ficar cada vez maior, intenso, apaixonante, até que tudo o resto seja consumido e apenas tu existas, com a arma na mão, a gritar para o infinito, nesse vórtice de ódio e loucura.

Se eu te apontasse um holofote para os olhos e jurasse que o amor não existe? E se jurasse tantas vezes que o amor não existe que isso mesmo se tornasse uma verdade para ti, se a luz te encadeasse de tal forma que pensasses ser um axioma inviolável? Ainda escreverias cartas como escreves? Ainda chorarias ao ver filmes românticos ou a pensar naquela pessoa que perdeste? Ainda lutarias como um louco pela felicidade e rezarias a pedir ajuda a Deus mesmo sem O conhecer ou sem acreditar na Sua existência?

E se, depois de te desconstruir a alma, depois de te desprogramar, como se faz aos computadores, eu te largasse no meio do mundo? Como reagirias? Ficarias assustado? Lutarias com unhas e dentes para regressar à antiga realidade? Ou irias para casa e ficarias fechado no teu quarto, encolhido sobre ti mesmo, sem querer ver o que te rodeia, sem querer sentir outra vez aqueles cheiros antigos e perfumados, que te trazem recordações que anseias serem outra vez realidade, o cheiro da liberdade de acção e de escolha, a capacidade de criar a tua vida a cada momento, sem medo, sem constrangimentos, sem regras, aqueles cheiros que te trazem outra vez à memória as paisagens, as paisagens flutuantes que te pairam na memória e te uivam na alma? Serias um autómato consciente das limitações do ser, consciente de que és apenas parte do que podias ser, de que és castrado, infeliz, miserável, apesar de todas as aparências e de todas as recompensas falsas?

E se esperneasses, se te revoltasses? Se, apesar do medo e do abismo, corresses para fora do casulo que construí em teu redor? E se descobrisses então que o amor existe e está em todo o lado, que o amor é criação pura, liberdade e coragem e é afinal a única redenção? E se uma simples carícia fosse capaz de reprogramar-te outra vez e de devolver a tua personalidade? E se uma só palavra fosse capaz de te fazer abandonar o mal? E se um beijo te fizesse esquecer de que tens medo do escuro e te permitisse sentir as coisas com verdade?

E se os anjos de asas brilhantes e os demónios de cornos e cauda não passassem de mentiras e apenas existissem pessoas, pessoas, com coisas boas e más, defeitos e virtudes, mas com luz, com individualidade, com liberdade, com verdade, com capacidade de criar e de amar, de sonhar e de caminhar?

E se tu fosses apenas uma delas, apesar o negares?

(excerto da peça de teatro homónima que publiquei no ano de 2003)

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