29/03/2010

Descobrir a poesia da vida

Provavelmente, lido assim de repente, o nome Beatriz Russo (leia-se Beatrice, com o devido e magnifico sotaque italiano) não lembrará nada aos leitores deste texto. No entanto, alguns lembrar-se-ão de quem se trata, se referir que foi a musa inspiradora de Mário Ruopollo, o carteiro-poeta que levava cartas ao exilado Pablo Neruda no belíssimo filme de 1994, realizado por Michael Radford, “O Carteiro de Pablo Neruda”.

Nesta obra, que prova mais uma vez a sensibilidade e o mundo de afectos do cinema italiano (vide também “A Vida é Bela”, “Cinema Paraíso”, “Malena” ou “La Strada”), encontramos, além de momentos de grande beleza, um grande tratado sobre a vida. É por trás das coisas, neste caso das imagens e das palavras, como ensina Neruda ao jovem aprendiz de poeta Mário, que se encontra a magia e a poesia.

E é por isso que, celebrando o recente Dia da Poesia, escrevi esta crónica para um jornal da região onde vivo, o Área Oeste. Porque o próprio filme é uma celebração da poesia, de Pablo Neruda, mas, mais do que isso, do próprio acto da criação poética.

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12/03/2010

A partilha da angústia (texto longo)

Aconteceu-me isto: de noite, já avançada, caminhava lado a lado com um amigo. Dirigia-me para um bar, onde planeava conviver e passar uma noite animada. Andava um pouco desanimado porque havia já algum tempo que não conseguia alcançar aquele estado de inspiração que me leva a escrever a um ritmo alucinante. Por isso, precisava urgentemente de me divertir e distrair.

À entrada do referido bar, fomos abordados por um homem. Era de média estatura e lembro-me que usava um casaco azul. O seu casaco, a barba por fazer e a garrafa na mão são as únicas lembranças físicas que retenho dele. Estava nitidamente embriagado. Cambaleava e falava com a voz entaramelada. O hálito era insuportável, numa mistura de vinho e cerveja. O meu amigo, pouco paciente para estas situações, continuou a avançar em direcção ao bar, sem pausar para ver o que ele desejava. Eu, pelo contrário, ouvi o que me queria dizer. Não me recordo do que me contou de início. Mas sei que, de repente, perguntou-me se fazia ideia da razão pela qual estava embriagado daquela maneira. Respondi-lhe que não.

“Estou a comemorar o décimo aniversário do meu filho”, disse.

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08/03/2010

Pequeno Conto para o Dia da Mulher (texto longo)

Já escrevi este conto há uns anos e já o utilizei algumas vezes em outros locais. Mas como uma amiga me lembrou dele e o seu título original era "Pequeno Conto para o Dia da Mulher", resolvi voltar a colocá-lo aqui na íntegra, dedicado outra vez, claro, a todas as mulheres.

1. Dizia-te coisas muito parvas e sem qualquer sentido, melosas, demasiado melosas eu sei, capazes de fazer torcer o nariz às pessoas menos habituadas a lidar com palavras doces, tão habituadas à rudeza das coisas, à rugosidade do dia-a-dia e à velocidade dos sentimentos. Dizia-te por exemplo: quando te vejo, sinto flores a crescerem nas minhas mãos. Ou então: não sei como é que o sol consegue nascer sem te ver primeiro. Ou ainda: quando vejo o teu sorriso, sinto que ganho asas e que sou capaz de voar. Mas não me importava nada de parecer tonto ou ingénuo, não me importava de te repetir lugares comuns ou palavras de um romantismo exagerado; o que me interessava era que o resultado das minhas palavras era sempre o mesmo, fossem as minhas palavras quais fossem, e esse resultado era o teu sorriso, depois o sabor doce dos teus lábios e as cócegas que o teu cabelo comprido fazia no meu peito nu.

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06/03/2010

Fazer ou pensar

Acredito que, na maior parte dos casos, ter cautela e ponderar demoradamente nos problemas em busca de soluções lógicas é um exercício que se prova, além de cansativo, desgastante e violento para o Homem, perfeitamente inútil.

Seria de facto útil apenas se pudéssemos unir ao dom do pensamento o dom da adivinhação; aí sim, faria sentido escolher qual o caminho a seguir, na certeza de que o resultado seria o escolhido, longe das influências dos imprevistos, das decisões tomadas pelos outros, do espontâneo da vida.

No entanto, como tal não é possível, acredito que a intuição e o impulso são, muitas vezes, a melhor solução. Ao menos aí vive-se o agora, o presente, em vez de se ficar sempre preso ao que irá ser, baseado no que foi.

Mas ninguém o explicou tão bem como Agostinho da Silva, que passo a citar:

"Conhecemos tão pouco da vida, do mecanismo complexo que deve ser este do mundo que, segundo me parece,o decidir-se não tem grande valor, senão no que respeita à estima que poderemos manter por nós próprios, à confiança que talvez seja absurda, mas que em todo o caso nos pemite o viver. Creio que, sejam quais forem as circunstâncias, tanto faz decidir-se atirando uma moeda ao ar; meditamos gravemente, pesamos todos os elementos, depois fazemos exactamente o que faria o homem que tendo visto apenas a milésima parte de um milímetro do dente de uma roda de engrenagem tivesse opiniões firmes sobre o género de papel ou de bolacha fabricada pela máquina que não a percebe no seu conjunto. Só por um extraordinário acaso se poderá acertar; temos todas as possibilidades, caro Amigo, de tomar sempre um decisão errada; a sorte da moeda ainda deve talvez ser a melhor, porque, pelo menos, suprime do sistema, já complexo, um elemento que pode perturbar: o da nossa vontade."