Provavelmente, lido assim de repente, o nome Beatriz Russo (leia-se Beatrice, com o devido e magnifico sotaque italiano) não lembrará nada aos leitores deste texto. No entanto, alguns lembrar-se-ão de quem se trata, se referir que foi a musa inspiradora de Mário Ruopollo, o carteiro-poeta que levava cartas ao exilado Pablo Neruda no belíssimo filme de 1994, realizado por Michael Radford, “O Carteiro de Pablo Neruda”.
Nesta obra, que prova mais uma vez a sensibilidade e o mundo de afectos do cinema italiano (vide também “A Vida é Bela”, “Cinema Paraíso”, “Malena” ou “La Strada”), encontramos, além de momentos de grande beleza, um grande tratado sobre a vida. É por trás das coisas, neste caso das imagens e das palavras, como ensina Neruda ao jovem aprendiz de poeta Mário, que se encontra a magia e a poesia.
E é por isso que, celebrando o recente Dia da Poesia, escrevi esta crónica para um jornal da região onde vivo, o Área Oeste. Porque o próprio filme é uma celebração da poesia, de Pablo Neruda, mas, mais do que isso, do próprio acto da criação poética.
“O Carteiro de Pablo Neruda” coloca-nos perante duas poesias diferentes, a que existe nas palavras, inventadas para que o ser humano possa recriar, compreender e comunicar o que o rodeia, e o próprio mundo em todas as suas vertentes, com toda a sua beleza e crueldade naturais. Em todas as coisas existe poesia. Este é um pensamento aparentemente lírico e comum, mas que é partilhado até pela raiz da própria palavra, que no original grego poiesis significa “acção de fazer alguma coisa”, o que pode ser extrapolado para “acção de criar alguma coisa” ou “acção criadora”. Então, se a acção criadora é poesia, todo o universo, enquanto criação, é o grande, o maior poema que existe. É isso que Pablo Neruda ensina ao jovem Mário e que o leva a conseguir apaixonar-se de uma forma intensa e metaforicamente afectuosa pela inesquecível Beatriz Russo (a incrivelmente bela Maria Gracia Cuccinotta na foto ilustrativa deste post).
Penso, por isso, nessa poesia eterna e constante que se respira em tudo o que existe, não apenas nas paisagens inspiradoras ou no sentimento amoroso, mas também nas coisas tristes e melancólicas, até na morte, desencadeadora de emoções, memórias e medos afectos.
Essa poesia, ou antes, essa “acção de fazer alguma coisa”, tem andado arredada do espírito do Homem, que se deixa ofuscar pelos sentimentos negativos e pela incapacidade de reagir perante um mundo perfeito e cheio de caminhos para escolher. Sem perceber essa dança divina, esse sopro constante que nos percorre em todos os momentos. No filme, foi depois de falar com Neruda e de partilhar o olhar e o sorriso de Beatriz Russo, que Mário resolveu alterar radicalmente a sua vida, sem rumo e sentido, e tornar-se poeta, descobrir e cantar as coisas belas da vida e até conquistar o seu amor, aparentemente impossível.
É a capacidade de perceber que existem diferentes realidades e universos dentro de uma mesma vida e saber que se pode alcançar cada um deles, desafiando o que existe. Não criar, não inovar, seguir sempre os mesmos caminhos e ficar escondido dentro do ninho quente, é desrespeitar a capacidade criadora que nos foi dada.
É preciso então descobrir a poesia da vida. Ou deixá-la descobrir-nos. Ou, como escreveu Pablo Neruda, “E foi naquela época... / A poesia chegou e procurou-me. / Eu não sei, não sei de onde veio, / se de um inverno ou de um rio. / Eu não sei como nem quando. / Não, não eram vozes, / não eram palavras, nem silêncio; / mas de uma rua eu fui chamado abruptamente / dos ramos da noite, dos outros, / no meio de um tiroteio violento, / e num retorno solitário lá estava eu / sem um rosto... e ela tocou-me”.
29/03/2010
Descobrir a poesia da vida
Publicada por Luís Costa Pires à(s) 03:01 1 comentários
12/03/2010
A partilha da angústia (texto longo)
Aconteceu-me isto: de noite, já avançada, caminhava lado a lado com um amigo. Dirigia-me para um bar, onde planeava conviver e passar uma noite animada. Andava um pouco desanimado porque havia já algum tempo que não conseguia alcançar aquele estado de inspiração que me leva a escrever a um ritmo alucinante. Por isso, precisava urgentemente de me divertir e distrair.
À entrada do referido bar, fomos abordados por um homem. Era de média estatura e lembro-me que usava um casaco azul. O seu casaco, a barba por fazer e a garrafa na mão são as únicas lembranças físicas que retenho dele. Estava nitidamente embriagado. Cambaleava e falava com a voz entaramelada. O hálito era insuportável, numa mistura de vinho e cerveja. O meu amigo, pouco paciente para estas situações, continuou a avançar em direcção ao bar, sem pausar para ver o que ele desejava. Eu, pelo contrário, ouvi o que me queria dizer. Não me recordo do que me contou de início. Mas sei que, de repente, perguntou-me se fazia ideia da razão pela qual estava embriagado daquela maneira. Respondi-lhe que não.
“Estou a comemorar o décimo aniversário do meu filho”, disse.
Obviamente que o olhei com um ar de reprovação. “Não era melhor estar em casa com ele, em vez de estar aqui na rua, com pessoas que não conhece?”, perguntei eu, cheio de moralidade.
“Talvez", respondeu, "Mas é que, ao mesmo tempo que festejo o aniversário dele, estou também a fazer um luto”.
“O quê?”, perguntei, verdadeiramente curioso, enquanto o meu amigo, furioso, me fazia sinais para largar o homem.
“O parto do meu filho foi difícil. Foi uma cesariana de muitas horas, mas o médico não desistiu e conseguiu salvar o meu filho e a minha mulher. Porém, nesse mesmo dia, enquanto salvava a vida da minha criança, o filho dele morria num acidente de automóvel”, explicou.
Era essa a causa da sua embriaguez: a partilha do sofrimento do homem que tornara possível que tivesse um motivo de alegria. O homem continuou a falar, mas não me consigo lembrar do que disse. Eu já não estava em condições de continuar a conversar. Algo se tinha acendido dentro de mim. Despedi-me dele, entrei no bar e informei o meu amigo que ia para casa. A inspiração voltara; precisava de escrever.
Desde então nunca mais vi esse homem do qual, lamentavelmente, nem o nome conheço. Ou então, provavelmente, passa por mim todos os dias, mas usa agora um casaco diferente e anda com a barba mais cuidada e sem o passo cheio de vinho. Não sei onde o posso encontrar e há poucas coisas na vida que lamente mais que isso, do que não ter sido capaz de esperar mais um pouco quando se reacendeu aquela chama de inspiração dentro de mim, e de o ter ouvido mais um pouco.
Afinal de contas, gostava de lhe poder explicar que, mesmo sabendo que isso em nada minimizaria a sua dor, naquela noite em que ele festejava e lamentava em simultâneo o nascimento do seu filho, ele tinha ajudado a que renascesse um escritor.
Escrevi depois isto:
O homem de casaco azul e barba por fazer chega a casa já muito depois da madrugada nascer. Cambaleante, dirige-se para o quarto do filho. Abre a porta devagar e aproxima-se da cama. Como está embriagado, tropeça num brinquedo e faz barulho. O jovem acorda assustado.
“Não te assustes”, diz o pai, “Sou eu. Vinha dar-te as boas noites”.
O jovem olha-o no escuro e reconhece a silhueta. “Porque não estiveste comigo hoje?”, pergunta, sentido, no seu jeito de criança, sobrancelha franzida, mãos nervosamente a enrolarem-se uma na outra.
“Estive contigo sempre”, responde o pai, serenamente embriagado.
“Não te vi”.
“Há coisas que não se vêem: sentem-se”
O pai senta-se na borda da cama e afaga o cabelo do filho. Este faz uma careta, igual à que faz quando não gosta da sopa que lhe dão, e diz: “Tens a boca a cheirar mal!”.
“Pois tenho... sinto-a amarga.”, responde, sem conter um sorriso. Abraça depois o filho com força e começa a chorar.
O filho, sem saber porquê, limita-se a falar:
“Gostava que tivesses estado aqui. Mas estou contente por agora estares”.
“Estou e vou estar sempre contigo”.
Abraçam-se ainda com mais força porque são pai e filho e nem o vinho vai separar estes dois. A criança, a quem não consigo inventar um nome, desculpa-o pela ausência, percebendo que tem uma vida de ensinamentos e brincadeiras pela frente. Ao mesmo tempo, o amargo da boca do pai começa a desaparecer; afinal não era vinho, era desgosto, e aquele abraço ajudou-o a dilui-lo.
Não sei se foi isto que aconteceu depois de ter deixado o homem entregue ao seu misto de alegria e angústia. Mas, na ausência de encontrar outra vez o meu amigo dessa noite, gosto de pensar que foi assim que tudo se passou.
Às vezes, imaginar que o que escrevo se tornou realidade faz de mim um homem muito mais feliz.
Publicada por Luís Costa Pires à(s) 00:13 2 comentários
08/03/2010
Pequeno Conto para o Dia da Mulher (texto longo)
Já escrevi este conto há uns anos e já o utilizei algumas vezes em outros locais. Mas como uma amiga me lembrou dele e o seu título original era "Pequeno Conto para o Dia da Mulher", resolvi voltar a colocá-lo aqui na íntegra, dedicado outra vez, claro, a todas as mulheres.
1. Dizia-te coisas muito parvas e sem qualquer sentido, melosas, demasiado melosas eu sei, capazes de fazer torcer o nariz às pessoas menos habituadas a lidar com palavras doces, tão habituadas à rudeza das coisas, à rugosidade do dia-a-dia e à velocidade dos sentimentos. Dizia-te por exemplo: quando te vejo, sinto flores a crescerem nas minhas mãos. Ou então: não sei como é que o sol consegue nascer sem te ver primeiro. Ou ainda: quando vejo o teu sorriso, sinto que ganho asas e que sou capaz de voar. Mas não me importava nada de parecer tonto ou ingénuo, não me importava de te repetir lugares comuns ou palavras de um romantismo exagerado; o que me interessava era que o resultado das minhas palavras era sempre o mesmo, fossem as minhas palavras quais fossem, e esse resultado era o teu sorriso, depois o sabor doce dos teus lábios e as cócegas que o teu cabelo comprido fazia no meu peito nu.
2. Há muitas coisas que nunca te contei, mas que gostava agora que soubesses. Um dia disseram-me que os anjos não comunicam da mesma maneira que os humanos, por palavras, mas sim por vibrações. E nessas vibrações eles não entendem a palavra não. Por isso, para nos entenderem, temos sempre que ser afirmativos e positivos. Achei tanta piada a isto que, a partir desse dia, quando te levantavas devagar da cama e te preparavas para ir embora, já não te pedia para não ires, como fazia tantas vezes. Em vez disso, dizia-te apenas: fica. Ainda não sei se eras mesmo um anjo ou não. Talvez fosses, acho que nunca saberei. Mas a verdade é que ficavas sempre mais um pouco, quando eu te dizia simplesmente para ficares.
3. Algumas das vezes em que aparecias sem avisar na minha casa, depois de pousares a mala no sofá e de acariciar o pelo macio dos gatos, depois de espalhares o teu cheiro a flores silvestres pela sala, olhavas-me nos olhos e dizias que querias ficar sozinha comigo no meio de uma multidão. Das primeiras vezes não percebia o que querias dizer, porque era uma frase confusa e porque ainda estava atordoado pela tua aparição súbita, que me enchia sempre de uma alegria contagiante de criança e me deixava capaz de fazer as coisas mais loucas, de dar cambalhotas ou de fazer o pino, de sair para a rua e gritar o que sentia, sei lá, ficava assim, vê bem como ficava, completamente eufórico e inconsequente. Mas, mesmo sem perceber o que querias dizer, confiava em ti cegamente. Não podia fazer outra coisa, se ficava assim, assim de uma forma que não te consigo descrever bem, atordoado, acho que é a palavra mais parecida com aquilo que te quero dizer, sem forças para te dizer que não. Era por isso que te seguia para onde me levavas. E então, porque te seguia cegamente, fosses tu para qualquer lado, íamos sempre para onde houvesse muita gente, para onde houvesse muita confusão e gritaria, para o meio de um estádio de futebol num dia de jogo importante, para a estreia de um filme de grande sucesso, ou para a pista principal de uma discoteca ao fim-de-semana. E tinhas razão. Tudo o que nos rodeava desaparecia quando ficávamos os dois sozinhos, no meio daquelas coisas todas, como se ambos conseguíssemos existir no vazio e os outros estivessem ali apenas para assistir ao enlaçar das nossas mãos.
4. Uma das coisas que mais admirava em ti era a tua serenidade. Não sei como conseguias nunca te irritar perante nada, nem mesmo quando os problemas apareciam em catadupa e pareciam querer engolir tudo. Reagias às contrariedades de uma forma bem diferente da minha, sempre com leveza e suavidade, como se o mundo fosse uma coisa lógica e capaz de se remendar a si próprio com toda a facilidade. Lembro-me bem: olhavas calmamente para mim enquanto eu desfiava os problemas, assustado, sentindo-me perdido no meio do negrume. Depois, quando me calava, acendias um cigarro. Olhavas para a chama do isqueiro, como se fosse uma luz que iluminasse a escuridão, e depois para o fumo que invadia o ar. Olhavas outra vez para mim. Não era o isqueiro a verdadeira chama, afinal. Dizias: tem calma. E eu tinha. Tinha toda a calma do mundo. E os problemas desapareciam no ar, como o fumo do teu cigarro.
5. Queria que esta história nunca terminasse e que pudesse escrevê-la para sempre, mesmo que fosse demasiado romântica e que me repetisse vezes sem conta. Ou então, queria que fosse como os dias, que morrem, mas depois voltam a nascer e seguem este ciclo eterno, seguindo uma tradição que nunca será rompida pelo tempo. É por isso que me recuso a escrever mais alguma coisa sobre ti, que faço um esforço titânico para não relembrar mais nada que se tenha passado entre nós. Para que continue sempre invadido da esperança de que tudo regresse e que nunca chegue o momento em que tenha de terminar uma última frase sobre ti com um ponto final, detesto esta palavra, final, para não ficar com a eterna sensação de que existem dias que, quando terminam, não voltam a nascer; seja porque o sol está morto de saudades, ou porque a lua não consegue parar de chorar
Publicada por Luís Costa Pires à(s) 15:58 4 comentários
06/03/2010
Fazer ou pensar
Acredito que, na maior parte dos casos, ter cautela e ponderar demoradamente nos problemas em busca de soluções lógicas é um exercício que se prova, além de cansativo, desgastante e violento para o Homem, perfeitamente inútil.
Seria de facto útil apenas se pudéssemos unir ao dom do pensamento o dom da adivinhação; aí sim, faria sentido escolher qual o caminho a seguir, na certeza de que o resultado seria o escolhido, longe das influências dos imprevistos, das decisões tomadas pelos outros, do espontâneo da vida.
No entanto, como tal não é possível, acredito que a intuição e o impulso são, muitas vezes, a melhor solução. Ao menos aí vive-se o agora, o presente, em vez de se ficar sempre preso ao que irá ser, baseado no que foi.
Mas ninguém o explicou tão bem como Agostinho da Silva, que passo a citar:
"Conhecemos tão pouco da vida, do mecanismo complexo que deve ser este do mundo que, segundo me parece,o decidir-se não tem grande valor, senão no que respeita à estima que poderemos manter por nós próprios, à confiança que talvez seja absurda, mas que em todo o caso nos pemite o viver. Creio que, sejam quais forem as circunstâncias, tanto faz decidir-se atirando uma moeda ao ar; meditamos gravemente, pesamos todos os elementos, depois fazemos exactamente o que faria o homem que tendo visto apenas a milésima parte de um milímetro do dente de uma roda de engrenagem tivesse opiniões firmes sobre o género de papel ou de bolacha fabricada pela máquina que não a percebe no seu conjunto. Só por um extraordinário acaso se poderá acertar; temos todas as possibilidades, caro Amigo, de tomar sempre um decisão errada; a sorte da moeda ainda deve talvez ser a melhor, porque, pelo menos, suprime do sistema, já complexo, um elemento que pode perturbar: o da nossa vontade."
Publicada por Luís Costa Pires à(s) 23:28 6 comentários