14/10/2003

O Xaile Rubro (conto)

Ergueu devagar o fósforo ardente, de forma a que não se apagasse com um qualquer movimento brusco e a brisa que o persegue, e esperou que os pavios, um a um, se acendessem, ardessem, fizessem invadir o ar de um alaranjado luminoso e daquele som tão característico do crepitar. Ouvia-o com atenção para poder defender uma velha teoria que gritava sempre que a embriaguez ultrapassava a sua conta, que se o amor é um fogo secreto que arde, então deve-se também conseguir ouvir crepitar uma pessoa que esteja realmente enfeitiçada por tal sentimento. Era um jogo de palavras que fazia rir os demais presentes, já tão habituados a elas, mais interessados verdadeiramente no que se passaria a seguir do que naquele chavão tão gasto.
Depois, andando pelo meio das mesas, chegaram os guitarristas. Entraram sérios e mudos, como se fossem estátuas a quem os deuses ofereceram o dom da locomoção, e sentaram-se nas cadeiras de madeira escura, três delas, dispostas em semicírculo por baixo dos castiçais que agora ardiam, em frente a Jacinto que os observava invejoso de não possuir tal porte, nem tais guitarras, apenas um fósforo que já não servia para mais senão para ser deitado ao lixo.
Finalmente entrou ela. Reluzente, no seu brilho negro de contraluz, topázio de cores abissais e de silhueta de noite cantante à lua, parou na soleira da porta. Olhou em volta, passeando os seus olhos dourados pela sala, à procura dos de Matias, prateados, em busca da sua luminosidade de metal menos nobre mas embriagante. Encontrou apenas a palete colorida dos turistas, a curiosidade de quem viaja pelo mundo em busca de percebê-lo, o rubor na face de uma admiradora e os dedos chamuscados de Jacinto. A sua aura sombreou-se e foi só a dignidade do seu xaile rubro, encarnado como os lábios em forma de pecado, que a impediu de baixar cabeça e sair. Em vez disso avançou forte e segura, tentando esquecer-se daquela ausência.
Os guitarristas levantaram-se para a receber, diva do fado, cantadeira de Alfama e do Bairro Alto, e de todas as terras por este País fora onde ainda existe quem aprecia a nobre canção. Agradeceu. Virou-se para o público expectante e, quando iniciou o seu discurso de apresentação, percebeu que lhe iria custar fazer ouvir a sua voz, que estava oscilante e quebradiça. Mas não é mulher de receios, não iria permitir que se ruborizasse sem razão a face da mulher que bebia as suas palavras com tanta atenção, muito menos que ficassem defraudados os estrangeiros que tentavam coleccionar memórias de outras paragens. Ergueu a voz e sentiu os candelabros estremecerem, as chamas trémulas das velas a chorarem as palavras que entoava, desta vez ainda com mais sentimento, pois a ausência de Matias, aquela malfadada ausência tornava mais verídicas as suas palavras de sofrimento e de saudade, de destino cruel cantado.
Jacinto chorava. Pobre coitado, cauteleiro de dia, engraxador nos tempos áureos da nação, acendia velas de noite em jeito de um pagamento amigavelmente consentido por lhe deixarem assistir àquela cantoria divina, àqueles trinados da guitarra, ao dançar do xaile vermelho naqueles ombros meio descobertos. Aplaudiu com fúria no final da primeira música, de pé, ele que não se sentara um único segundo durante a canção, mas mais de pé agora, como se crescesse cinco centímetros, como se voasse.
No final da noite, quando já os turistas tinham gasto todo o seu rolo de fotografias e a sala estava quase deserta, Amélia sorria a contragosto para a sua admiradora, que a inundava de perguntas e elogios, enquanto ansiava pelo momento em que pudesse ficar sozinha e sentar-se em pranto, sem que ninguém a visse. Jacinto mordiscava um palito, preso no canto da boca. Pensava no que ouvira, não durante a noite, mas durante a gritaria de cauteleiro. Um amigo informara-lhe que Matias fugira com uma estrangeira, que viajara para o norte da Europa, envolto em luxos e uma promessa de sonos sempre doces e despreocupados. Olhava agora com admiração a silhueta de Amélia, tão bela, envolta naquele xaile vermelho e no vestido preto, com os cabelos longos, pintados a sépia, a caírem pelas costas, e os lábios, os lábios carnudos, suaves apenas para que possam acariciar o timbre com que canta. Que estrangeira poderia valer aquela magia, perguntou-se ele que todas as noites se embriaga na sua voz, na sua alegria voraz de viver, temporariamente enegrecida e na teoria inconcebível para uma mulher que canta o fado daquela maneira, com tantas mágoas e pesares.
Aproximou-se dela quando a viu já sozinha, a olhar o xaile vermelho, ofertado meses antes pelo tal homem de olhos prateados. Colocou-lhe a mão no ombro e sorriu. “Deixa-o ir embora à vontade. Homens há muitos”, sussurrou-lhe. Amélia ergueu-se, com o semblante carregado e caminhou para a porta. Inspirando o seu perfume, Jacinto tornou a falar. “Há homens que não te trocam por nada”, continuou.
Amélia colocou o xaile nos ombros, enchendo-se outra vez de charme e de uma dignidade que parecia impossível existir momentos antes, no meio das lágrimas que vertia. “Mas não são esses que tornam possível que se cante o fado”, concluiu.
Concordou Jacinto com esta verdade inapelável e, impassível, ainda embriagado pelo perfume do xaile rubro, apagou as velas e depois a luz.

LCP

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